domingo, 28 de março de 2010

The Coffee Traveler - By Ensei Neto

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Sutilezas do Ton-Sur-Ton da Torra do Café

Posted: 27 Mar 2010 01:52 PM PDT

Dois conceitos fundamentais devem estar sedimentados entre os produtores e seus técnicos: as condições geográficas, que têm influência decisiva sobre o perfil sensorial dos grãos de café, e considerar o grão de café como fruta, que, como tal, deve ser colhida plenamente madura, seguida de uma correta aplicação de técnica de secagem, chave para se obter uma bebida de excelente qualidade.

Do ponto de vista agronômico ou como muitos dizem "da porteira para dentro", estas etapas são fundamentais para que a qualidade da bebida se garanta, tal qual se observa em relação aos vinhos.

Ultimamente as semelhanças entre café e vinho têm sido cada vez mais enfatizadas, principalmente após o surgimento do conceito dos Cafés Especiais. No entanto, existem diferenças muito grandes entre estas duas bebidas como a evolução e sofisticação que o mercado dos vinhos já atingiu, equivalendo a uma homérica distância de aproximadamente 20 anos à frente do mercado de café, e o seu serviço.

Vinhos de alta qualidade são elaborados e engarrafados em sua origem, ganhando, em seguida, espaço em adegas e mesas, cujo serviço pode ser executado a partir da necessidade de um período de descanso ou não. Alguns vinhos, por exemplo, atingem sua maturidade e o auge de suas características sensoriais após alguns anos de descanso, que permitem a finalização de complexas reações bioquímicas que formarão compostos que têm a maravilhosa missão de tornar cada gole numa experiência muito agradável.

O hábito cada vez difundido de uma taça de vinho acompanhando refeições é fruto de um impressionante trabalho de educação do consumidor, após desmistificar conceitos e, ao mesmo tempo, demonstrando toda a grandiosidade que essa bebida possui.

Harmonizações, origens, varietais e safras ou vindimas fazem parte de um vocabulário que está se tornando comum às pessoas, estimulando-as a consumirem melhor porque acabam conhecendo mais sobre o produto.

No caso do café, em apenas alguns casos, além da produção e preparo básico nas fazendas, ele passa por seleção por tamanho, densidade e cor na própria origem, operações que  garantem grande uniformidade dos grãos. Em seguida, podem ser postos em sacarias de juta que exibem belas estampas que identificam a fazenda que os produziu.

Observe que diferentemente do vinho o café normalmente sai das fazendas como matéria-prima, e que antes de chegar no momento do serviço passa por uma fase intermediária que é o processo de torra.

É de conhecimento geral, também, que a avaliação sensorial do café é feita com o café depois de torrado. A metodologia tradicional de avaliação de café feita no Brasil, conhecida como COB – Classificação Oficial Brasileira, emprega uma torra denominada clara ou leve obtida com poucos minutos sob o calor de uma forte chama dos tradicionais torradores de tambor de laboratório.

Há uma razão para esse procedimento.

Como o foco dessa metodologia é a verificação de defeitos da bebida, onde se incluem sabores como o do ácido acético (que é o vinagre, conhecido no mercado como ardido), dos compostos fenólicos (que lembram o creosol, de cheiro medicinal e sabor amargo como fel, originando as chamadas Bebida Rio e Bebida Riada), estes decorrentes de transformações bioquímicas dos grãos, e de sabores que tenham origens externas ao grão, como contaminações por óleos, por exemplo, a torra clara permite rápida percepção destes sabores.

Nesta metodologia, o processo de torra é interrompido antes dos famosos "pops", que são os sons produzidos durante o rompimento das paredes celulares pela formação da água como resultado das Reações de Pirólise (piros = chama, lise = quebra), as substâncias de sabor do café acabam não sendo totalmente desenvolvidas, facilitando a identificação dos defeitos da bebida.

Enquanto isso, a Metodologia de Avaliação de Café da SCAA – Specialty Coffee Association of America tem como objetivo identificar todo o potencial de qualidade de um café e, por isso, o ponto de torra recomendado é o mesmo dos produtos comerciais.

O ponto de torra é tão importante na avaliação sensorial e, também, no serviço ao consumidor, que foram desenvolvidos equipamentos de avaliação da coloração da torra que funcionam baseados no princípio de refração e de reflexão de feixes de luz incidentes no café, sendo o mais conhecido no mercado aqueles fabricados pela empresa norte-americana Agtron.

O ponto de torra é verificado através de uma escala de coloração que tende a zero para as mais escuras, enquanto que para as mais claras tende a cem.

Como são equipamentos sofisticados e caros, foi criado um conjunto de discos de cores pela SCAA e a empresa Agtron com tecnologia gráfica de altíssima qualidade e que se torna muito útil e bastante acessível para muitos profissionais. Este conjunto é conhecido como Conjunto de Discos de Cores SCAA-Agtron.

Observe na foto abaixo três discos representando, respectivamente da esquerda para a direita, os seguintes pontos: #95, que é o mais claro, #65, empregada em torra média-clara, e o #45, que é um ponto de torra considerado moderadamente escuro.

Observe o sutil e elegante efeito de ton-sur-ton que esta escala apresenta.

A metodologia SCAA de avaliação sensorial recomenda que a torra seja finalizada com ponto entre #65 e #55, geralmente empregado nos produtos industrializados dos países consumidores do hemisfério norte e para espresso.

No processo de torra, o café cru é colocado no torrador de tambor, por exemplo, quando este está pré-aquecido, sendo usual a temperatura por volta de 240°C. Ao preencher parte do tambor, o café cru provoca uma queda natural da temperatura interna até que o sistema entre em equilíbrio, o que ocorre entre dos 110º a 125°C.

A partir daí inicia-se um interessantíssimo processo físico-químico, quando o calor é absorvido pelos grãos de café por vários mecanismos. Após alguns minutos, quando o restante da água livre, ou seja, aquela que não está ligada às células, evapora, os grãos começam a apresentar uma delicada alteração em sua cor, passando de esverdeado a um tom palha.

Nesse ponto, quando um leve aroma de massa de pão fermentado, decorrente da quebra dos açúcares de cadeia longa, surge e o grão adquire coloração entre os discos #95 e #85 pode ser retirado para uma clássica avaliação sensorial pela metodologia COB.

Caso o processo tenha continuidade, os grãos começam a apresentar uma coloração castanha e se notas aromáticas florais estiverem presentes, estas começam podem ser percebidas.

O processo de torra é semelhante a um processo chamado de destilação seca, cujo objetivo é o de se extrair o maior número de componentes aromáticos existentes num material, usualmente madeiras ou a hulha, através do calor. Assim, conforme o grão vai absorvendo energia, progressivamente sua coloração vai se intensificando ao mesmo tempo em que um fantástico desfile de aromas se forma. Por volta dos 190°C podem ser ouvidos os primeiros "pops", sons semelhantes ao do estouro da pipoca, mas que neste caso indicam a água formada pela reação de pirólise evaporando-se. Esta reação é a quebra de moléculas de açúcares que ao reagir com o oxigênio presente formam gás carbônico e água. Ao mesmo tempo, açúcares mais complexos começam a se "quebrar", gerando outros mais simples, conferindo um aroma muito adocicado nesta fase. Até aqui, em geral, o processo percorreu aproximadamente 80% do tempo total da torra e há um breve momento de "silêncio".

Quando o segundo conjunto de "pops" é ouvido e que acabam lembrando os traques de festas juninas, a reação de pirólise é dominante e a fumaça se altera para uma coloração esbranquiçada. Neste ponto, a temperatura fica por volta dos 215°C e os grãos adquirem uma coloração que corresponde ao disco #55.

O aroma se modifica novamente, desaparecendo o adocicado, que dá lugar a notas mais densas, como a do chocolate ou mesmo frutas secas como amêndoas, e toques de caramelo, porém por um breve momento. É que a reação de pirólise se torna auto-suficiente em termos energéticos, não necessitando mais de uma fonte externa de calor para se manter, e o cheiro de gás carbônico começa a ser dominante, caracterizado pelo seu toque "seco" e discretamente ardido. Também, neste ponto a atenção, no caso de torras artesanais, tem de ser redobrada, pois um pequeno descuido e os sabores resultantes do processo de carbonização se tornam dominantes.

Excelentes espressos são preparados com grãos com este ponto de torra (SCAA-Agtron entre #65 e #55), bem como grandes blends para o serviço de coador. Se o processo de torra continuar, recebendo calor sem interrupção, os grãos vão adquirindo coloração intensamente escura. Provavelmente, o termômetro indicará temperatura em torno de 225°C ou um pouco mais. Não é recomendável que a torra chegue a esse ponto, algo equivalente ao disco #35 ou até #25, pois os óleos na superfície são mais suscetíveis à oxidação, levando ao cheiro e sabor de ranço, além do amargor típico de queimado. Da mesma forma, este tipo de torra deixa de ser adequado para o serviço de espresso porque a oleosidade superficial certamente provocará problemas nos moinhos.

Por outro lado, óleo rançoso é sinal de que, no caso do espresso apenas um medíocre creme poderá se formar…caso se forme!

A torra mais intensa acaba fazendo diminuir a percepção de defeitos de bebida, como a adstringência devido a grãos imaturos, por conta da intensificação do sabor amargo. Apenas para lembrar, a percepção humana para o sabor amargo tem a impressionante proporção de 1 para 2.000.000 em relação ao sabor doce! Isto significa que basta um único grão com uma fermentação fenólica que confere amargor medicinal, por exemplo, em meio a centenas e centenas de grãos maduros que  ainda assim esse sabor será sentido. Isto explica porque o sabor amargo acaba suplantando outros sabores.

Lembre-se: o sabor amargo é contraponto ao sabor doce.

Torras mais claras tornam mais perceptíveis os ácidos naturais dos grãos do café, como o ácido cítrico, presente na laranja e limão. À medida que a torra se intensifica, o sabor ácido entra em equilíbrio com o sabor adocicado dos açúcares presentes, para, depois, gradativamente diminuir sua intensidade. É quando a acidez dá lugar aos sabores de maior densidade. Algumas substâncias amargosas são formadas nesta fase em decorrência de quebra de moléculas de grande estrutura.

Deve ser entendido que cada origem tem um processo de torra específico, da mesma forma que aplicação que se deseja para um determinado blend define o seu ponto de finalização.

Como se observa, a torra do café envolve um grandioso processo artístico, onde verdadeiros artesões podem extrair notas de aroma e sabor inusitados, que, certamente, irão propiciar uma grande experiência sensorial ao consumidor. Assim, o mercado de café se estreitará cada vez mais com o do vinho, o que poderá ser, sem dúvida, um excelente motivo para um brinde!

Com uma bela xícara de café, é claro…

Ensei Neto

Novembro de 2007

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